quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Contos


Foto do perfil de Fabio Baptista

Olha amigos hoje venho trazer um lindo conto de um incrível amigo e grande escritor. Espero que gostem ....
                 Por causa da chuva.

Eu o conheci por causa da chuva.
Minha melhor amiga se casaria no Domingo, numa cidadezinha que ficava alguns quilômetros antes do fim do mundo, no interior do estado vizinho. Eu seria a madrinha – afinal, a melhor amiga sempre tem que ser madrinha. Como não tinha namorado na época (aliás, eu nunca tinha namorado, pelo menos não por mais de dois meses seguidos), o padrinho seria um primo do noivo, que ela me garantiu ser um “gatinho muito inteligente” (ela sempre tinha essa mania de querer me arrumar pretendentes). Eu ainda era nova, mas já tinha experiência o suficiente para não acreditar mais em Papai Noel, nem em gatinhos muito inteligentes. Ou era gatinho (e completamente imbecil e cafajeste), ou inteligente... e feio pra burro. Imaginei esse tal primo se encaixando na segunda opção, mas como até então eu só havia optado pelos rapazes do primeiro tipo (e só tinha quebrado a cara), até que estava considerando a possibilidade de arriscar. Na verdade eu estava carente, há uns quatro ou cinco meses sem saber o que era um homem me abraçando e tinha certeza que acabaria ficando com o tal primo de qualquer forma, mesmo sabendo que dificilmente um relacionamento mais sério teria futuro, porque caramba, como eu conseguiria namorar alguém que morasse naquele fim de mundo? Bom, minha amiga conseguiu e agora ia até se casar, então talvez eu conseguisse também.
Esses pensamentos tomavam conta de mim durante a viagem e eu não vi a estrada, nem o tempo passar. Nem a chuva cair. Consegui uma folga na firma de contabilidade (quem disse que estagiários não têm mordomias de vez em quando?) e saí de casa na sexta de manhã (na verdade um pouco depois da uma da tarde, o que na época ainda poderia ser considerado “de manhã” para mim), pronta para encarar as longas 12 horas de viagem. Chegaria lá de madrugada, passaria o Sábado ajudando nos preparativos (e talvez já conhecesse o primo gatinho e inteligente) e no Domingo presenciaria o grande dia de felicidade da minha querida amiga. Seria perfeito.
Mas o destino nos prega algumas peças às vezes, talvez para mostrar que não somos nós que estamos no comando. E a chuva se transformou em uma tempestade, que me fez parar de pensar no primo, na amiga, no casamento, tudo. Só conseguia me concentrar na estradinha estreita, sem tirar os olhos da faixa amarela que me mostrava o caminho, distorcida pela água que escorria incansavelmente pelo vidro, sem que o limpador de para-brisa na velocidade máxima conseguisse dar conta. Minhas mãos seguravam o volante com tanta força que meus braços até começaram a doer. Tensão - sempre detestei dirigir na chuva. Durou uma hora mais ou menos, uma longa e terrível hora. Depois virou garoa e em alguns minutos, quase como mágica, o céu se abriu, revelando um monte de estrelas que a gente da cidade nem sabe que existe. Tudo bem, o pior já tinha passado, só ia me atrasar um pouco, mas estava tudo bem. Estava tudo bem. Parei no primeiro posto de gasolina que encontrei e entrei no café, precisava relaxar um pouco. Luz fraca, uma atendente gorda e mal humorada e dois caminhoneiros velhos, magros e nojentos que ficaram olhando minha bunda e minhas coxas enquanto eu pedia um café para a gorda. Hoje eu não sei como tinha coragem de entrar num lugar daqueles (com um short daqueles), mas na época eu tinha. E na verdade me achava “a” gostosa quando via que os homens ficavam me olhando, mesmo que fossem dois caminhoneiros sujos. Bobagens da juventude. Tomei o café, até que estava bom - muito bom aliás. Ou talvez minha expectativa que estivesse muito baixa e daí qualquer coisa diferente de água suja me surpreenderia. Sei lá, só sei que tomei o café, paguei a conta e fui embora, antes que as minhas coxas caíssem de tanto ser olhadas. Continuei a viagem, ainda faltavam uns 150 quilômetros, mas agora, sem a chuva, chegaria lá rapidinho. Passei a entrada da penúltima cidade antes do meu destino e me surpreendi com a quantidade de carros que entravam ali, vindo da direção oposta da estrada. Logo entendi o porquê. Vi sirenes e gente de uniforme - e isso nunca é bom sinal. Estavam bloqueando a pista. Desci para conversar e ver o que estava acontecendo.
- Oi moço, o que houve?
- A pista está fechada, senhora.
A primeira coisa que veio na cabeça foi - “tá, não sou cega, mas será que você pode me explicar um pouco melhor ou tá difícil?”. Mas consegui manter a pose e a educação.
- Ah, entendi. Mas por que o bloqueio? Teve algum acidente?
- Não, graças a Deus não. Só um deslizamento de terra que interditou todo o caminho.
- Hum... que coisa hein? Mas assim... em quanto tempo o senhor acha que vão liberar? Preciso ir num casamento.
- Ah, daqui a pouco os tratores chegam, acho que até amanhã à tarde no máximo tudo já terá voltado ao normal.
- Tem certeza moço? Se for demorar mais eu vou ter que fazer um baita de um contorno, mas será melhor do que ficar aqui parada.
- Olha moça, pra senhora chegar ali pelo outro lado, vai ser um baita de um contorno mesmo. E com a chuva que deu, nada garante que outras estradinhas não estarão bloqueadas também. Bom, a senhora é quem sabe. Depois que os tratores chegarem o serviço é rápido. Por que a senhora não volta para a cidadezinha aqui perto e arruma um hotel por lá? Daí amanhã volta aqui e vê como estão as coisas.
- É, acho que vou fazer isso. Obrigada!
Algo me disse pra pegar o carro e contornar. Só que o único caminho alternativo era uma nova viagem, teria que voltar, pegar outra estrada, contornar todo o estado vizinho para pegar uma estradinha de terra que ia até o fim de mundo que a minha amiga resolveu escolher para casar. E eu já havia dirigido muito e estava cansada, com o corpo todo dolorido. De qualquer forma, se na manhã seguinte essa estrada ainda estivesse bloqueada, eu poderia optar por esse caminho alternativo e daria tempo ainda. Estava tudo tranquilo, tudo sob controle. Então fui mais um carro voltando e entrando na cidadezinha que havia acabado de passar. Consegui uma pousada, até que bem arrumada e limpinha. Enquanto preenchia a tediosa ficha de identificação, percebi que um cara me olhava. Olhei de volta e ele disfarçou, também estava preenchendo a identificação e voltou a atenção para a sua ficha. Terminei antes que ele, entreguei o papel ao dono da pousada e peguei minha mochila no chão, me preparando para ir ao quarto 102. Quando dei um passo, ele tomou fôlego, virou repentinamente e disse:
- Garota, eu gosto do seu rosto.
Cansada, naquela hora da noite, preocupada com a estrada, eu ouvi a pior cantada da minha vida. E a minha única reação foi dizer (com a cara toda retorcida) um representativo:
- Quê?
- Garota, eu gosto do seu rosto...
- Tá, eu ouvi da primeira vez, mas putz... que cantada mais fraquinha, hein?
Ele deu risada. E até que o sorriso era charmoso.
- Você não gostou? Pensei que você iria me dizer que era cantora e segurar a minha mão.
Dessa vez eu que dei risada, que cara maluco!
- Meu, você está doido? Tá chapado? Sobrou um pouco desse negócio que você fumou?
- Não, na verdade foi uma cantada temática. É que você está com a camisa do “Yellow Submarine”, então imaginei que gostasse dos Beatles. Daí eu te falei o mesmo que o Desmond disse para a Molly na música “Obla-di Obla-da”. Mas pelo jeito não deu certo.
Putz, realmente eu estava com a camisa azul com o submarino amarelo desenhado, mas nem lembrava que era dos Beatles. Nem sabia de que música ele estava falando, Obla-di o quê?
- Ah... na verdade eu não conheço muito os Beatles, essa camiseta tem uma longa história. Quer dizer, nem tão longa assim, mas agora você me deixou meio envergonhada... ah, mas foi uma cantada fraca de qualquer forma!
- É, acho que foi mesmo, desculpe. Vou tentar melhorar na próxima. Mas eu gostei do seu rosto, de verdade. Apesar desse nariz um pouco torto. Se bem que é até charmoso.
- Ah, beleza. E o seu nariz é lindo, viu? Boa noite.
Que palhaço. Pego a mochila e vou pro quarto. Tomo um banho rápido, olho minha bunda no espelho, nenhuma celulite. Analiso minha barriga, nenhuma gordura, nenhuma estria. Olho meu rosto, nenhuma espinha. Eu era bonita, eu era gostosa. Reparo bem no meu nariz... torto é a puta que pariu. Bom, talvez só um pouquinho, olhando de lado. Mas torta mesmo era aquela cara de babaca dele. Só o sorriso charmoso que se salvava.
E eu sonhei com aquele sorriso a noite inteira.
Na manhã seguinte, um belo dia de sol, com certeza a estrada já estaria boa. Peguei o café da manhã (bem servido e caprichado, levando em conta o tamanho da pousada) e me sentei. Enquanto cortava o pão caseiro, percebi uma presença em frente à minha mesa.


- Bom dia! Passei a noite pensando em várias cantadas, será que posso me sentar aqui e te falar as melhores, pra ver se você gosta de alguma?
Fiquei alguns segundos sem reação. Inicialmente pensei em esnobá-lo, por ter tido a audácia de dizer que meu nariz era torto. Mas eu estava carente. E ele estava com aquele sorriso tão bonito.
Nós tomamos café e conversamos a manhã inteira. Ele me disse que estava indo para a casa da mãe dele, uma cidade depois de onde minha amiga se casaria. Disse que fiquei surpresa por descobrir que o mundo não acabava depois dali. Ele riu, nós rimos. O mundo riu. Passeamos pela pequena cidade onde estávamos forçadamente hospedados e aquele parecia o lugar mais bonito do mundo. Tomamos banho de cachoeira, escalamos uma montanha para ver o sol se pôr. E nos beijamos pela primeira vez, tendo as nuvens ganhando tons escarlates como pano de fundo.
Rachamos uma garrafa do vinho mais vagabundo do mundo, mas que naquela hora parecia ter saído do melhor chateau da França. Conversamos como se nos conhecêssemos há séculos, nos beijamos como se o mundo fosse acabar naquele dia, nos apaixonamos como só podemos nos apaixonar uma vez na vida. Foi bonito. Foi perfeito. Parecia que nada mais importava, que o tempo estava congelado, assistindo o nascimento de uma grande história. Mas ele não estava. E uma coisa ainda me importava – o casamento! Descemos correndo pela trilha escura da montanha e chegamos ofegantes e suados na pousada, o que despertou olhares desconfiados do senhorio. Peguei minha mochila no quarto, devolvi a chave do 102, paguei a conta, me despedi do meu novo paquera, trocando telefones e juras de amor, entrei no carro e saí em disparada. Já passava das duas da manhã, o casamento seria às dez, mas ainda havia tempo de sobra. Se a estrada não estivesse bloqueada.
Comecei a chorar incontrolavelmente quando vi as sirenes de alerta. Desci para falar com um dos policiais e descobri que era uma pedra que havia desabado, precisariam de uma máquina mais potente do que os tratores convencionais. Essa máquina ainda estava a caminho e a estrada ficaria fechada por três dias. No mínimo. Já não dava mais tempo de contornar pelo caminho alternativo, já não dava tempo de pular a pedra e ir a pé, mesmo que isso fosse possível. Já não dava tempo para mais nada. Só para chorar. E eu chorei muito. Em meio às lágrimas, vi um sorriso charmoso, um olhar carinhoso e apaixonado. Ele havia me seguido, agora me oferecia um abraço protetor e dizia que não queria ficar longe de mim por mais nem um minuto sequer. Continuei chorando por muito tempo naqueles braços. E entre as lágrimas de desespero por ter perdido o casamento, escorreram algumas de felicidade, por ter encontrado uma grande paixão.
Minha amiga nunca mais falou comigo, nunca me perdoou. Tentei me desculpar de todas as formas, mas não teve jeito. Bom, eu também sou mulher e sei como é. Quando alguém em quem confiamos muito nos decepciona, dificilmente tem volta. E quando tem, nunca mais é a mesma coisa, como um vaso que se quebra e depois é remendado com cola – você sempre verá as fissuras e se lembrará porque elas estão ali. Nesse caso, isso não aconteceria, nem colar o vaso ela quis. Mas naquele momento eu estava apaixonada, tudo estava dando certo na minha vida e pra ser bem sincera, nem me importei muito com o rompimento. Quem se preocupa com antigas amizades quando está vivendo o começo de um grande amor?
E eu vivi intensamente aquele amor, bebi muito vinho (dos melhores e dos piores), viajei, me perdi naqueles ombros largos, me entreguei de corpo e alma, perdi a noção do tempo e a conta das noites de amor, me emaranhei em abraços na beira da fogueira, pintei na memória nuvens escarlates vistas do topo da montanha, ouvi Beatles e me perguntei como pude ter vivido sem conhecer aquelas músicas, me perguntei como pude ter vivido até então, sem aquela paixão avassaladora, sem aquele sorriso. Estudei Nietzsche e respondi “sim”, com toda a certeza do mundo ao questionamento – “você vive hoje uma vida que gostaria de viver eternamente?”. A vida seguiu o fluxo natural, noivamos, depois casamos. Fui efetivada e depois promovida para contadora plena. Ele conseguiu se estabilizar como professor de filosofia em uma grande universidade. Tudo estava perfeito.
Afastei-me dos amigos, me isolei do mundo, vivia apenas por ele e ele por mim. E isso me bastava, não queria mudar. Nossa alegria parecia ser completa, estávamos no auge de nossas vidas, de nossa felicidade. O problema é que depois do auge, só há uma direção possível a se percorrer. E o nosso relacionamento começou a cair, com uma briguinha aqui, outra ali, um ciumezinho besta aqui, uma cara feia acolá. Nada demais, mas eu já não via tanto aquele sorriso pelo qual me apaixonei e quando via, inexplicavelmente não dava tanto valor. Nesse período de baixa, aconteceu algo que mudou tudo, trazendo uma alegria renovada aos nossos corações. Dei à luz a uma menina linda que mudou nossa vida, nos fez ver o mundo sob uma nova perspectiva, nos amadureceu na marra, nos revelou o verdadeiro significado da palavra “amor”. E da palavra “cansaço”.
Um ano depois, o segundo filho, um menino. E uma laqueadura. Perfeito.
Quer dizer, era pra ser perfeito, mas apesar de toda a felicidade e de todo o amor que uma família completa gera, passei por grandes questionamentos existenciais naquele período. Quando nosso segundo filho nasceu, ele me pediu para abandonar a empresa de contabilidade e me dedicar à criação das crianças, dizia que seria importante para eles ter esse contato com a mãe, que daria conta das despesas sozinho, mesmo que fosse para arrumar aulas extras em outra faculdade. Ele dizia que depois, com as crianças grandes, eu poderia voltar a trabalhar, mas nunca poderia voltar o tempo e conviver com meus bebês em período integral caso optasse por continuar trabalhando. Segundo Aristóteles, a coragem do homem revela-se no comando, e a da mulher na obediência. No fundo do coração eu sabia que a melhor coisa a fazer seria “obedecer”, escutar o que ele estava me falando, ficar em casa e cuidar dos meus filhos. Mas eu não nasci para ser uma mulher dependente de marido, então decidi continuar no emprego. E acho que essa é a coisa que eu mais me arrependo de ter feito na vida.
Nunca imaginei como seria terrível deixar os bebês em uma escolinha, sendo cuidados, alimentados e educados por completos desconhecidos. Eu sofria a cada despedida, a cada “tchau” dado com aquelas mãozinhas gordinhas na porta do berçário. Eu ia para a firma, mas a cabeça ficava nas crianças e isso acaba gerando um desgaste emocional muito grande. Além disso, depois de trabalhar em tempo integral, ainda precisava chegar em casa e fazer o serviço doméstico. Ele me ajudava, muito. Mas mesmo assim é terrivelmente cansativo, para os dois. Em todas as fotos que tenho daquela época estou com cara de acabada.
Fotos.
Quem vê uma foto de um casal sorrindo e brincando com os filhos no quintal, não imagina quantas fraldas sujas, quanto vômito, quantas viroses e noites em claro no pronto-socorro precederam aqueles momentos de alegria. É uma fase estranha da vida. Ao mesmo tempo que seu peito transborda de tanta alegria e amor pelas crianças, sua cabeça parece querer explodir, seu corpo parece implorar para que você saia correndo e não volte nunca mais. Você continua respondendo sim à pergunta do Nietzsche, mas antes faz uma breve reflexão e dá um suspiro. Mas as crianças crescem e o cansaço diminui um pouco, as preocupações se modificam. Depois eles crescem mais e de uma hora para outra já não precisam mais de você. A menina se casa e vai morar com o marido em outro estado, o menino vai fazer intercâmbio em um país gelado, arruma um bom emprego e decide ficar por lá. Nenhum dos dois te liga com a frequência que você gostaria.
Meu ninho ficou vazio. Só sobrou meu marido, mas agora, depois de tanto tempo juntos, nós parecíamos mais estranhos um ao outro do que quando nos conhecemos. Quando íamos visitar a mãe dele e passávamos pela entrada daquela cidadezinha em que nos vimos pela primeira vez, eu chorava em silêncio por causa disso. Nós tínhamos memórias, mais longas do que a estrada que se estendia à nossa frente, mas aquilo parecia ter acontecido em outra vida. Uma vida da qual agora eu sentia saudade.
- Você nunca mais me deu aquele sorriso.
- Que sorriso?
- Aquele seu sorriso charmoso, que me deixou louca por você.
- Como assim? Vira e mexe eu estou sorrindo.
- Você sabe do que eu estou falando. Não é um sorriso qualquer, que aparece quando a gente ouve uma piada boba. É “o” sorriso. O sorriso apaixonado, que me fazia sentir especial. Você nunca mais sorriu daquele jeito.
- Nunca mais desde quando?
- Sei lá, desde muito tempo. Desde quando você deixou de me desejar.
- Amor, eu nunca deixei de te desejar. Só estou um pouco velho e cansado. Mas ainda te amo e te desejo igual a quando nos conhe...
- Vamos mudar de assunto, por favor. Não suporto quando você mente pra mim.
- Eu não estou men...
- Outro assunto, por favor... por favor...
Ele não me desejava mais, isso era fato. Nietzsche disse que a felicidade do homem é o “eu quero” e a felicidade da mulher é o “ele quer”. Nenhum de nós estava feliz. Ele não me queria mais e eu sabia disso. Mesmo com toda vaidade que eu sempre tive, mesmo com as cirurgias e tratamentos que colecionei pelo caminho, tentando conservar ao máximo a juventude, chega uma hora que não tem jeito, sir Isaac Newton e sua maldita lei acabam vencendo. Minha bunda tinha celulite, minha barriga tinha gordura e estrias, meus peitos estavam caídos. A idade havia chegado, eu não veria mais aquele sorriso, era irreversível. Já estava mais próxima dos 50 do que dos 40, me perguntava quantos anos teria ainda pela frente, me perguntava se valeria a pena me separar, libertar a ele e a mim mesma daquele cárcere com grades de monotonia e falta de vontade que se tornara nosso casamento. Ou se deveria apenas sofrer em silêncio, vivendo num paradoxo de Abilene até que o destino resolvesse intervir de alguma forma. Acabei seguindo essa última opção.
E o destino manifestou-se antes do que eu esperava.
Numa tarde qualquer, fiquei olhando a chuva escorrer pelo vidro do escritório, pensando no que poderia fazer para dar um novo ânimo ao nosso relacionamento. O que havia mudado? O que estava faltando? Cheguei à conclusão que faltava um pouco de loucura. Aquele bocadinho de insanidade que todo mundo precisa ter de vez em quando para ser feliz. Então deixei os relatórios pra amanhã, saí sem avisar ninguém e fui até a universidade, fazer uma surpresa. Parei o carro na primeira vaga que encontrei e fui andando na chuva, até o prédio da filosofia. Não tinha um plano definido, provavelmente tentaria entrar na sala em que ele lecionava e dizer “eu te amo”, com a roupa toda molhada. Não sei o que eu faria, só sei que estava me sentindo livre, apaixonada e feliz como há muito não me sentia. Só precisava ver aquele sorriso para que tudo ficasse novamente perfeito. Mas cheguei bem na hora do intervalo das aulas e eu que acabei sendo surpreendida.
Eu o conheci por causa da chuva. E me apaixonei por um sorriso.
Eu o perdi por causa da chuva. E por causa daquele mesmo sorriso.
O sorriso que eu não via há tantos anos e agora estava lá, estampado para outra. Eu o vi, descendo as escadas do prédio de filosofia, compartilhando um guarda-chuva com alguma aluna oferecida, uma vaquinha loira, com quem ele conversava com animação, olhava com interesse, sorria com desejo. Eles caminharam na minha direção e ele estava tão distraído que quase esbarrou em mim antes de me notar. Quando me viu, o sorriso se desfez. E isso quebrou meu coração em mil pedaços.
Não falei nada, apenas virei as costas e corri. Pensei que ele iria me seguir, mas nem isso. Provavelmente não quis passar vergonha na frente da piranhazinha. Me senti a pior mulher do mundo, me senti rejeitada, trocada, humilhada. E fiz o que uma mulher faz nessas situações.
Eu traí.
Traí não. Mulher não trai, mulher se vinga. Fui para um motel e liguei para um colega de trabalho, que sempre dava em cima de mim quando ficava bêbado nas festas de fim de ano. Passei o endereço e disse que era a chance que ele tanto queria e esperava. Ele pensou que fosse alguma pegadinha, mas acabou vindo. E eu entreguei meu corpo a ele. Só o corpo, porque a alma estava chorando encolhida em outro lugar, em outro tempo. Voltei para casa como se nada tivesse acontecido.
- Pra onde você foi?
- Se estivesse interessado em saber, teria me seguido, não ficado lá com aquela biscatinha loira.
- Amor, me desculpe, mas eu fiquei completamente sem reação. A “biscatinha loira“ é minha aluna, só estava dando carona de guarda-chuva para ela.
- Ah é? E o que ela está te dando em troca dessas caronas?
- Por favor, não seja ridícula...
- Ridícula? Você que é um ridículo! Você não me procura mais na cama, não me dá mais atenção, não sorri mais pra mim. Ah, mas pra mim você está um pouco “velho e cansado”, né? Mas para aquela putinha oferecida você não está!
- Querida, escute. Sei que você não gostou do que viu, mas te garanto que não há absolutamente nada entre...
- NÃO MENTE PRA MIM SEU FILHO DA PUTA!!!! Você acabou com a minha vida, você é um desgraçado, você me prometeu o que não podia cumprir. Maldita foi a hora em que aquela pedra fechou a estrada e me obrigou a te conhecer. Minha vida teria sido muito melhor sem você. Seu... seu...
- Seu... o quê?
Eu poderia ter falado qualquer coisa, qualquer palavrão do mundo. Poderia ter xingado a mãe, zombado do tamanho do pau, qualquer coisa. Para um homem, qualquer ofensa tem volta, menos uma. E foi bem a que eu falei, em alto e bom som.
- SEU CORNO!
O resto foi um borrão. Falamos o que não devia nunca ser dito por ninguém. E nos separamos. No começo foi um alívio, uma sensação de liberdade indescritível. Mas algumas semanas depois, quando a adrenalina abaixa e o vazio toma conta, é difícil segurar a barra. Eu ligava para ele todos os dias, armava “emboscadas” na porta da universidade, me jogava aos pés e implorava por perdão, implorava para ele voltar pra mim. E me humilhei, me arrependi, chorei. Mas não adiantou nada. Dois anos depois ele se casou novamente, com aquela vaquinha. Nunca soube se já havia alguma coisa entre eles naquele dia de chuva ou se ele só fez isso para me dar a impressão que tinha me traído primeiro, pra “sair por cima”. Tentava me convencer que era a primeira opção, para ficar com raiva e tentar esquecê-lo e deixar de amá-lo. Mas no fundo da alma eu acreditava que era a segunda e tinha a certeza que um dia ele ainda voltaria para mim. Eu fiquei solteira, vagando por bares, ouvindo histórias absurdas de homens que me queriam e me desejavam apenas por uma noite. Também era o tempo que eu os queria e os desejava, então entrei em acordo e me entreguei a muitos deles. Quantos homens uma mulher pode amar na vida? Fisicamente eu amei vários, mas amar no sentido real da palavra eu amei apenas um. E mesmo agora, há quase dez anos sem contato, eu ainda o amo. Meu doce homem de ombros largos e sorriso charmoso. Ele se separou da putinha loira e está morando com a mãe, no interior do estado vizinho. Fiquei sabendo pelos meus filhos, nos nossos raros telefonemas. Soube também que ele está com câncer e isso me despertou um certo senso de urgência, tirou a certeza que eu tinha de que um dia ele voltaria para mim. Ele não voltaria, ele morreria. Todos nós morreríamos, mais cedo ou mais tarde. Eu estou mais para 60 do que para 50, preciso vê-lo mais uma vez, antes que isso deixe de ser uma opção. Preciso implorar pelo seu perdão novamente, preciso perguntar se ele ainda me ama, dizer que eu ainda o amo, dizer o quanto me arrependo por tê-lo perdido, do quanto eu tenho saudade dos dias em que vivíamos juntos. Preciso olhar nos olhos e dizer que ele sempre foi e sempre será o grande amor da minha vida.
Esses pensamentos tomam conta de mim durante a viagem e eu não vejo a estrada, nem o tempo passar. Nem a chuva cair. A chuva se torna tempestade e eu me sinto com vinte anos de novo, indo para o casamento da minha amiga. Penso que toda a minha vida foi moldada por uma pedra que rolou do barranco e bloqueou a estrada. Pelo destino, que sempre gosta de nos dizer quem é que manda. E ele tentaria me dizer mais uma vez.
Vejo sirenes à frente. A estrada estava fechada por causa de um deslizamento, ironicamente quase no mesmo lugar em que houve o bloqueio há tantos anos. Converso com o policial e descubro que, também ironicamente, a estrada ficaria fechada por três dias. Ouço o destino rindo da minha cara, mais uma vez. Penso em fazer o contorno pelo outro estado. Penso em desistir. Então penso em fazer uma loucura. Sou tomada por aquele pouquinho de insanidade que a gente precisa de vez em quando, para tentar ser feliz.
Estou velha, mas minhas pernas ainda são fortes, minhas coxas sempre foram grossas. Volto até o posto de gasolina, encho minha mochila de garrafas d´água e pão, paro o carro uma curva antes das sirenes e começo a subir o morro. Vou contornar o deslizamento e caminhar os 112 quilômetros até a primeira cidade depois do bloqueio. De lá pego carona, táxi, cavalo, qualquer coisa. Dá quase um dia inteiro de caminhada, 20 horas mais ou menos. Eu aguento, tenho que aguentar. Não vou deixar o destino ditar as regras dessa vez.
Subo com relativa facilidade, mas o chão está pura lama lá no alto. Meu pé atola no barro, mas sigo em frente. Escorrego e caio de bunda no chão, mas não foi nada, só um susto. Passo pelo trecho do deslizamento, torcendo para que nenhum policial me veja. Desço para a estrada um pouco mais adiante, me ralando toda no mato. Vou caminhando e caminhando. Encaro isso como um tipo de peregrinação, uma caminhada de purificação. Depois penso que é engraçado sempre tentarmos atribuir significados divinos paras as nossas ações. E sigo caminhando, até minhas pernas começarem a queimar, meus pés latejarem, até o dia amanhecer. E até depois disso. O sol do meio dia castiga a pele, mas não posso parar agora. E não paro. Continuo, ignorando a dor, até chegar à cidade, onde pego um táxi. Passo pela entrada da cidadezinha da minha ex-melhor amiga e dou risada ao me lembrar quando me contaram que ela acabou se separando do marido por causa do primo “gatinho e muito inteligente”. Ao me aproximar da cidade da minha ex-sogra, meu coração acelera. Estou velha, exausta, imunda e com cara de acabada. Deveria ter me arrumado melhor para esse encontro surpresa.
Chego à casa e pago uma pequena fortuna ao motorista. Bato palmas no portão, a velha vem ver quem é e demora um pouco para me reconhecer.
- Nossa minha filha, você está diferente...
- Mais velha, né?
- É minha filha... pra quem é novo, o tempo faz diferença. Eu já era velha quando a gente se conheceu, então não devo ter mudado tanto.
- É, a senhora não mudou quase nada, continua forte, hein?
Nunca gostei muito dela, nem ela de mim. Mas aquela conversa banal me deu vontade de chorar. Sentia alegria, saudade, remorso. Sentia vontade de ter vinte anos novamente e fazer tudo de novo. Ela me conduz até o quarto dele e não consigo conter as lágrimas. Choro mais ainda quando o vejo deitado na cama, magro, pálido, sem nenhum fio de cabelo. Meu grande amor está ali, dormindo, morrendo. Tantas coisas que eu quero falar. Tantas coisas, tantas palavras. Mas ele acorda e me olha. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu o ajudo a apoiar a cabeça mais para o alto do travesseiro e ele me diz, respirando com dificuldade:
- Garota, eu gosto do seu rosto...
Eu desabo a chorar. Seguro a mão dele e canto baixinho “Obla-di, Obla-da, life goes on bra... La La how the life goes on”. Ele então sorriu pra mim. Não um sorriso qualquer, que a gente dá quando ouve uma piada boba, mas sim AQUELE sorriso. O sorriso que decretou o rumo da minha vida. E então eu provo o gosto da felicidade novamente. Ouvimos a chuva começar a cair no telhado, sentimos nossas almas unidas, como nunca deveriam ter deixado de ser. Como na verdade, nunca deixaram de ser.
E não precisamos dizer mais nenhuma palavra.


FIM


CONTATOS DO AUTOR
                                                                          Amara Fernanda.

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