Olha amigos hoje venho trazer um lindo conto de um incrível amigo e grande escritor. Espero que gostem ....
Por causa da chuva.
Eu o conheci por
causa da chuva.
Minha melhor amiga
se casaria no Domingo, numa cidadezinha que ficava alguns quilômetros
antes do fim do mundo, no interior do estado vizinho. Eu seria a
madrinha – afinal, a melhor amiga sempre tem que ser madrinha. Como
não tinha namorado na época (aliás, eu nunca tinha namorado, pelo
menos não por mais de dois meses seguidos), o padrinho seria um
primo do noivo, que ela me garantiu ser um “gatinho muito
inteligente” (ela sempre tinha essa mania de querer me arrumar
pretendentes). Eu ainda era nova, mas já tinha experiência o
suficiente para não acreditar mais em Papai Noel, nem em gatinhos
muito inteligentes. Ou era gatinho (e completamente imbecil e
cafajeste), ou inteligente... e feio pra burro. Imaginei esse tal
primo se encaixando na segunda opção, mas como até então eu só
havia optado pelos rapazes do primeiro tipo (e só tinha quebrado a
cara), até que estava considerando a possibilidade de arriscar. Na
verdade eu estava carente, há uns quatro ou cinco meses sem saber o
que era um homem me abraçando e tinha certeza que acabaria ficando
com o tal primo de qualquer forma, mesmo sabendo que dificilmente um
relacionamento mais sério teria futuro, porque caramba, como eu
conseguiria namorar alguém que morasse naquele fim de mundo? Bom,
minha amiga conseguiu e agora ia até se casar, então talvez eu
conseguisse também.
Esses pensamentos
tomavam conta de mim durante a viagem e eu não vi a estrada, nem o
tempo passar. Nem a chuva cair. Consegui uma folga na firma de
contabilidade (quem disse que estagiários não têm mordomias de vez
em quando?) e saí de casa na sexta de manhã (na verdade um pouco
depois da uma da tarde, o que na época ainda poderia ser considerado
“de manhã” para mim), pronta para encarar as longas 12 horas de
viagem. Chegaria lá de madrugada, passaria o Sábado ajudando nos
preparativos (e talvez já conhecesse o primo gatinho e inteligente)
e no Domingo presenciaria o grande dia de felicidade da minha querida
amiga. Seria perfeito.
Mas o destino nos
prega algumas peças às vezes, talvez para mostrar que não somos
nós que estamos no comando. E a chuva se transformou em uma
tempestade, que me fez parar de pensar no primo, na amiga, no
casamento, tudo. Só conseguia me concentrar na estradinha estreita,
sem tirar os olhos da faixa amarela que me mostrava o caminho,
distorcida pela água que escorria incansavelmente pelo vidro, sem
que o limpador de para-brisa na velocidade máxima conseguisse dar
conta. Minhas mãos seguravam o volante com tanta força que meus
braços até começaram a doer. Tensão - sempre detestei dirigir na
chuva. Durou uma hora mais ou menos, uma longa e terrível hora.
Depois virou garoa e em alguns minutos, quase como mágica, o céu se
abriu, revelando um monte de estrelas que a gente da cidade nem sabe
que existe. Tudo bem, o pior já tinha passado, só ia me atrasar um
pouco, mas estava tudo bem. Estava tudo bem. Parei no primeiro posto
de gasolina que encontrei e entrei no café, precisava relaxar um
pouco. Luz fraca, uma atendente gorda e mal humorada e dois
caminhoneiros velhos, magros e nojentos que ficaram olhando minha
bunda e minhas coxas enquanto eu pedia um café para a gorda. Hoje eu
não sei como tinha coragem de entrar num lugar daqueles (com um
short daqueles), mas na época eu tinha. E na verdade me achava “a”
gostosa quando via que os homens ficavam me olhando, mesmo que fossem
dois caminhoneiros sujos. Bobagens da juventude. Tomei o café, até
que estava bom - muito bom aliás. Ou talvez minha expectativa que
estivesse muito baixa e daí qualquer coisa diferente de água suja
me surpreenderia. Sei lá, só sei que tomei o café, paguei a conta
e fui embora, antes que as minhas coxas caíssem de tanto ser
olhadas. Continuei a viagem, ainda faltavam uns 150 quilômetros, mas
agora, sem a chuva, chegaria lá rapidinho. Passei a entrada da
penúltima cidade antes do meu destino e me surpreendi com a
quantidade de carros que entravam ali, vindo da direção oposta da
estrada. Logo entendi o porquê. Vi sirenes e gente de uniforme - e
isso nunca é bom sinal. Estavam bloqueando a pista. Desci para
conversar e ver o que estava acontecendo.
- Oi moço, o que
houve?
- A pista está
fechada, senhora.
A primeira coisa que
veio na cabeça foi - “tá, não sou cega, mas será que você pode
me explicar um pouco melhor ou tá difícil?”. Mas consegui manter
a pose e a educação.
- Ah, entendi. Mas
por que o bloqueio? Teve algum acidente?
- Não, graças a
Deus não. Só um deslizamento de terra que interditou todo o
caminho.
- Hum... que coisa
hein? Mas assim... em quanto tempo o senhor acha que vão liberar?
Preciso ir num casamento.
- Ah, daqui a pouco
os tratores chegam, acho que até amanhã à tarde no máximo tudo já
terá voltado ao normal.
- Tem certeza moço?
Se for demorar mais eu vou ter que fazer um baita de um contorno, mas
será melhor do que ficar aqui parada.
- Olha moça, pra
senhora chegar ali pelo outro lado, vai ser um baita de um contorno
mesmo. E com a chuva que deu, nada garante que outras estradinhas não
estarão bloqueadas também. Bom, a senhora é quem sabe. Depois que
os tratores chegarem o serviço é rápido. Por que a senhora não
volta para a cidadezinha aqui perto e arruma um hotel por lá? Daí
amanhã volta aqui e vê como estão as coisas.
- É, acho que vou
fazer isso. Obrigada!
Algo me disse pra
pegar o carro e contornar. Só que o único caminho alternativo era
uma nova viagem, teria que voltar, pegar outra estrada, contornar
todo o estado vizinho para pegar uma estradinha de terra que ia até
o fim de mundo que a minha amiga resolveu escolher para casar. E eu
já havia dirigido muito e estava cansada, com o corpo todo dolorido.
De qualquer forma, se na manhã seguinte essa estrada ainda estivesse
bloqueada, eu poderia optar por esse caminho alternativo e daria
tempo ainda. Estava tudo tranquilo, tudo sob controle. Então fui
mais um carro voltando e entrando na cidadezinha que havia acabado de
passar. Consegui uma pousada, até que bem arrumada e limpinha.
Enquanto preenchia a tediosa ficha de identificação, percebi que um
cara me olhava. Olhei de volta e ele disfarçou, também estava
preenchendo a identificação e voltou a atenção para a sua ficha.
Terminei antes que ele, entreguei o papel ao dono da pousada e peguei
minha mochila no chão, me preparando para ir ao quarto 102. Quando
dei um passo, ele tomou fôlego, virou repentinamente e disse:
- Garota, eu gosto
do seu rosto.
Cansada, naquela
hora da noite, preocupada com a estrada, eu ouvi a pior cantada da
minha vida. E a minha única reação foi dizer (com a cara toda
retorcida) um representativo:
- Quê?
- Garota, eu gosto
do seu rosto...
- Tá, eu ouvi da
primeira vez, mas putz... que cantada mais fraquinha, hein?
Ele deu risada. E
até que o sorriso era charmoso.
- Você não gostou?
Pensei que você iria me dizer que era cantora e segurar a minha mão.
Dessa vez eu que dei
risada, que cara maluco!
- Meu, você está
doido? Tá chapado? Sobrou um pouco desse negócio que você fumou?
- Não, na verdade
foi uma cantada temática. É que você está com a camisa do “Yellow
Submarine”,
então imaginei que gostasse dos Beatles. Daí eu te falei o mesmo
que o Desmond disse para a Molly na música “Obla-di
Obla-da”.
Mas pelo jeito não deu certo.
Putz, realmente eu
estava com a camisa azul com o submarino amarelo desenhado, mas nem
lembrava que era dos Beatles. Nem sabia de que música ele estava
falando, Obla-di
o quê?
- Ah... na verdade
eu não conheço muito os Beatles, essa camiseta tem uma longa
história. Quer dizer, nem tão longa assim, mas agora você me
deixou meio envergonhada... ah, mas foi uma cantada fraca de qualquer
forma!
- É, acho que foi
mesmo, desculpe. Vou tentar melhorar na próxima. Mas eu gostei do
seu rosto, de verdade. Apesar desse nariz um pouco torto. Se bem que
é até charmoso.
- Ah, beleza. E o
seu nariz é lindo, viu? Boa noite.
Que palhaço. Pego a
mochila e vou pro quarto. Tomo um banho rápido, olho minha bunda no
espelho, nenhuma celulite. Analiso minha barriga, nenhuma gordura,
nenhuma estria. Olho meu rosto, nenhuma espinha. Eu era bonita, eu
era gostosa. Reparo bem no meu nariz... torto é a puta que pariu.
Bom, talvez só um pouquinho, olhando de lado. Mas torta mesmo era
aquela cara de babaca dele. Só o sorriso charmoso que se salvava.
E eu sonhei com
aquele sorriso a noite inteira.
Na manhã seguinte,
um belo dia de sol, com certeza a estrada já estaria boa. Peguei o
café da manhã (bem servido e caprichado, levando em conta o tamanho
da pousada) e me sentei. Enquanto cortava o pão caseiro, percebi uma
presença em frente à minha mesa.
- Bom dia! Passei a
noite pensando em várias cantadas, será que posso me sentar aqui e
te falar as melhores, pra ver se você gosta de alguma?
Fiquei alguns
segundos sem reação. Inicialmente pensei em esnobá-lo, por ter
tido a audácia de dizer que meu nariz era torto. Mas eu estava
carente. E ele estava com aquele sorriso tão bonito.
Nós tomamos café e
conversamos a manhã inteira. Ele me disse que estava indo para a
casa da mãe dele, uma cidade depois de onde minha amiga se casaria.
Disse que fiquei surpresa por descobrir que o mundo não acabava
depois dali. Ele riu, nós rimos. O mundo riu. Passeamos pela pequena
cidade onde estávamos forçadamente hospedados e aquele parecia o
lugar mais bonito do mundo. Tomamos banho de cachoeira, escalamos uma
montanha para ver o sol se pôr. E nos beijamos pela primeira vez,
tendo as nuvens ganhando tons escarlates como pano de fundo.
Rachamos uma garrafa
do vinho mais vagabundo do mundo, mas que naquela hora parecia ter
saído do melhor chateau
da França. Conversamos como se nos conhecêssemos há séculos, nos
beijamos como se o mundo fosse acabar naquele dia, nos apaixonamos
como só podemos nos apaixonar uma vez na vida. Foi bonito. Foi
perfeito. Parecia que nada mais importava, que o tempo estava
congelado, assistindo o nascimento de uma grande história. Mas ele
não estava. E uma coisa ainda me importava – o casamento! Descemos
correndo pela trilha escura da montanha e chegamos ofegantes e suados
na pousada, o que despertou olhares desconfiados do senhorio. Peguei
minha mochila no quarto, devolvi a chave do 102, paguei a conta, me
despedi do meu novo paquera, trocando telefones e juras de amor,
entrei no carro e saí em disparada. Já passava das duas da manhã,
o casamento seria às dez, mas ainda havia tempo de sobra. Se a
estrada não estivesse bloqueada.
Comecei a chorar
incontrolavelmente quando vi as sirenes de alerta. Desci para falar
com um dos policiais e descobri que era uma pedra que havia desabado,
precisariam de uma máquina mais potente do que os tratores
convencionais. Essa máquina ainda estava a caminho e a estrada
ficaria fechada por três dias. No mínimo. Já não dava mais tempo
de contornar pelo caminho alternativo, já não dava tempo de pular a
pedra e ir a pé, mesmo que isso fosse possível. Já não dava tempo
para mais nada. Só para chorar. E eu chorei muito. Em meio às
lágrimas, vi um sorriso charmoso, um olhar carinhoso e apaixonado.
Ele havia me seguido, agora me oferecia um abraço protetor e dizia
que não queria ficar longe de mim por mais nem um minuto sequer.
Continuei chorando por muito tempo naqueles braços. E entre as
lágrimas de desespero por ter perdido o casamento, escorreram
algumas de felicidade, por ter encontrado uma grande paixão.
Minha amiga nunca
mais falou comigo, nunca me perdoou. Tentei me desculpar de todas as
formas, mas não teve jeito. Bom, eu também sou mulher e sei como é.
Quando alguém em quem confiamos muito nos decepciona, dificilmente
tem volta. E quando tem, nunca mais é a mesma coisa, como um vaso
que se quebra e depois é remendado com cola – você sempre verá
as fissuras e se lembrará porque elas estão ali. Nesse caso, isso
não aconteceria, nem colar o vaso ela quis. Mas naquele momento eu
estava apaixonada, tudo estava dando certo na minha vida e pra ser
bem sincera, nem me importei muito com o rompimento. Quem se preocupa
com antigas amizades quando está vivendo o começo de um grande
amor?
E eu vivi
intensamente aquele amor, bebi muito vinho (dos melhores e dos
piores), viajei, me perdi naqueles ombros largos, me entreguei de
corpo e alma, perdi a noção do tempo e a conta das noites de amor,
me emaranhei em abraços na beira da fogueira, pintei na memória
nuvens escarlates vistas do topo da montanha, ouvi Beatles e me
perguntei como pude ter vivido sem conhecer aquelas músicas, me
perguntei como pude ter vivido até então, sem aquela paixão
avassaladora, sem aquele sorriso. Estudei Nietzsche e respondi “sim”,
com toda a certeza do mundo ao questionamento – “você vive hoje
uma vida que gostaria de viver eternamente?”. A vida seguiu o fluxo
natural, noivamos, depois casamos. Fui efetivada e depois promovida
para contadora plena. Ele conseguiu se estabilizar como professor de
filosofia em uma grande universidade. Tudo estava perfeito.
Afastei-me dos
amigos, me isolei do mundo, vivia apenas por ele e ele por mim. E
isso me bastava, não queria mudar. Nossa alegria parecia ser
completa, estávamos no auge de nossas vidas, de nossa felicidade. O
problema é que depois do auge, só há uma direção possível a se
percorrer. E o nosso relacionamento começou a cair, com uma
briguinha aqui, outra ali, um ciumezinho besta aqui, uma cara feia
acolá. Nada demais, mas eu já não via tanto aquele sorriso pelo
qual me apaixonei e quando via, inexplicavelmente não dava tanto
valor. Nesse período de baixa, aconteceu algo que mudou tudo,
trazendo uma alegria renovada aos nossos corações. Dei à luz a uma
menina linda que mudou nossa vida, nos fez ver o mundo sob uma nova
perspectiva, nos amadureceu na marra, nos revelou o verdadeiro
significado da palavra “amor”. E da palavra “cansaço”.
Um ano depois, o
segundo filho, um menino. E uma laqueadura. Perfeito.
Quer dizer, era pra
ser perfeito, mas apesar de toda a felicidade e de todo o amor que
uma família completa gera, passei por grandes questionamentos
existenciais naquele período. Quando nosso segundo filho nasceu, ele
me pediu para abandonar a empresa de contabilidade e me dedicar à
criação das crianças, dizia que seria importante para eles ter
esse contato com a mãe, que daria conta das despesas sozinho, mesmo
que fosse para arrumar aulas extras em outra faculdade. Ele dizia que
depois, com as crianças grandes, eu poderia voltar a trabalhar, mas
nunca poderia voltar o tempo e conviver com meus bebês em período
integral caso optasse por continuar trabalhando. Segundo Aristóteles,
a coragem do homem revela-se no comando, e a da mulher na obediência.
No fundo do coração eu sabia que a melhor coisa a fazer seria
“obedecer”, escutar o que ele estava me falando, ficar em casa e
cuidar dos meus filhos. Mas eu não nasci para ser uma mulher
dependente de marido, então decidi continuar no emprego. E acho que
essa é a coisa que eu mais me arrependo de ter feito na vida.
Nunca imaginei como
seria terrível deixar os bebês em uma escolinha, sendo cuidados,
alimentados e educados por completos desconhecidos. Eu sofria a cada
despedida, a cada “tchau” dado com aquelas mãozinhas gordinhas
na porta do berçário. Eu ia para a firma, mas a cabeça ficava nas
crianças e isso acaba gerando um desgaste emocional muito grande.
Além disso, depois de trabalhar em tempo integral, ainda precisava
chegar em casa e fazer o serviço doméstico. Ele me ajudava, muito.
Mas mesmo assim é terrivelmente cansativo, para os dois. Em todas as
fotos que tenho daquela época estou com cara de acabada.
Fotos.
Quem vê uma foto de
um casal sorrindo e brincando com os filhos no quintal, não imagina
quantas fraldas sujas, quanto vômito, quantas viroses e noites em
claro no pronto-socorro precederam aqueles momentos de alegria. É
uma fase estranha da vida. Ao mesmo tempo que seu peito transborda de
tanta alegria e amor pelas crianças, sua cabeça parece querer
explodir, seu corpo parece implorar para que você saia correndo e
não volte nunca mais. Você continua respondendo sim à pergunta do
Nietzsche, mas antes faz uma breve reflexão e dá um suspiro. Mas as
crianças crescem e o cansaço diminui um pouco, as preocupações se
modificam. Depois eles crescem mais e de uma hora para outra já não
precisam mais de você. A menina se casa e vai morar com o marido em
outro estado, o menino vai fazer intercâmbio em um país gelado,
arruma um bom emprego e decide ficar por lá. Nenhum dos dois te liga
com a frequência que você gostaria.
Meu ninho ficou
vazio. Só sobrou meu marido, mas agora, depois de tanto tempo
juntos, nós parecíamos mais estranhos um ao outro do que quando nos
conhecemos. Quando íamos visitar a mãe dele e passávamos pela
entrada daquela cidadezinha em que nos vimos pela primeira vez, eu
chorava em silêncio por causa disso. Nós tínhamos memórias, mais
longas do que a estrada que se estendia à nossa frente, mas aquilo
parecia ter acontecido em outra vida. Uma vida da qual agora eu
sentia saudade.
- Você nunca mais
me deu aquele sorriso.
- Que sorriso?
- Aquele seu sorriso
charmoso, que me deixou louca por você.
- Como assim? Vira e
mexe eu estou sorrindo.
- Você sabe do que
eu estou falando. Não é um sorriso qualquer, que aparece quando a
gente ouve uma piada boba. É “o” sorriso. O sorriso apaixonado,
que me fazia sentir especial. Você nunca mais sorriu daquele jeito.
- Nunca mais desde
quando?
- Sei lá, desde
muito tempo. Desde quando você deixou de me desejar.
- Amor, eu nunca
deixei de te desejar. Só estou um pouco velho e cansado. Mas ainda
te amo e te desejo igual a quando nos conhe...
- Vamos mudar de
assunto, por favor. Não suporto quando você mente pra mim.
- Eu não estou
men...
- Outro assunto, por
favor... por favor...
Ele não me desejava
mais, isso era fato. Nietzsche disse que a felicidade do homem é o
“eu quero” e a felicidade da mulher é o “ele quer”. Nenhum
de nós estava feliz. Ele não me queria mais e eu sabia disso. Mesmo
com toda vaidade que eu sempre tive, mesmo com as cirurgias e
tratamentos que colecionei pelo caminho, tentando conservar ao máximo
a juventude, chega uma hora que não tem jeito, sir Isaac Newton e
sua maldita lei acabam vencendo. Minha bunda tinha celulite, minha
barriga tinha gordura e estrias, meus peitos estavam caídos. A idade
havia chegado, eu não veria mais aquele sorriso, era irreversível.
Já estava mais próxima dos 50 do que dos 40, me perguntava quantos
anos teria ainda pela frente, me perguntava se valeria a pena me
separar, libertar a ele e a mim mesma daquele cárcere com grades de
monotonia e falta de vontade que se tornara nosso casamento. Ou se
deveria apenas sofrer em silêncio, vivendo num paradoxo de Abilene
até que o destino resolvesse intervir de alguma forma. Acabei
seguindo essa última opção.
E o destino
manifestou-se antes do que eu esperava.
Numa tarde qualquer,
fiquei olhando a chuva escorrer pelo vidro do escritório, pensando
no que poderia fazer para dar um novo ânimo ao nosso relacionamento.
O que havia mudado? O que estava faltando? Cheguei à conclusão que
faltava um pouco de loucura. Aquele bocadinho de insanidade que todo
mundo precisa ter de vez em quando para ser feliz. Então deixei os
relatórios pra amanhã, saí sem avisar ninguém e fui até a
universidade, fazer uma surpresa. Parei o carro na primeira vaga que
encontrei e fui andando na chuva, até o prédio da filosofia. Não
tinha um plano definido, provavelmente tentaria entrar na sala em que
ele lecionava e dizer “eu te amo”, com a roupa toda molhada. Não
sei o que eu faria, só sei que estava me sentindo livre, apaixonada
e feliz como há muito não me sentia. Só precisava ver aquele
sorriso para que tudo ficasse novamente perfeito. Mas cheguei bem na
hora do intervalo das aulas e eu que acabei sendo surpreendida.
Eu o conheci por
causa da chuva. E me apaixonei por um sorriso.
Eu o perdi por causa
da chuva. E por causa daquele mesmo sorriso.
O sorriso que eu não
via há tantos anos e agora estava lá, estampado para outra. Eu o
vi, descendo as escadas do prédio de filosofia, compartilhando um
guarda-chuva com alguma aluna oferecida, uma vaquinha loira, com quem
ele conversava com animação, olhava com interesse, sorria com
desejo. Eles caminharam na minha direção e ele estava tão
distraído que quase esbarrou em mim antes de me notar. Quando me
viu, o sorriso se desfez. E isso quebrou meu coração em mil
pedaços.
Não falei nada,
apenas virei as costas e corri. Pensei que ele iria me seguir, mas
nem isso. Provavelmente não quis passar vergonha na frente da
piranhazinha. Me senti a pior mulher do mundo, me senti rejeitada,
trocada, humilhada. E fiz o que uma mulher faz nessas situações.
Eu traí.
Traí não. Mulher
não trai, mulher se vinga. Fui para um motel e liguei para um colega
de trabalho, que sempre dava em cima de mim quando ficava bêbado nas
festas de fim de ano. Passei o endereço e disse que era a chance que
ele tanto queria e esperava. Ele pensou que fosse alguma pegadinha,
mas acabou vindo. E eu entreguei meu corpo a ele. Só o corpo, porque
a alma estava chorando encolhida em outro lugar, em outro tempo.
Voltei para casa como se nada tivesse acontecido.
- Pra onde você
foi?
- Se estivesse
interessado em saber, teria me seguido, não ficado lá com aquela
biscatinha loira.
- Amor, me desculpe,
mas eu fiquei completamente sem reação. A “biscatinha loira“ é
minha aluna, só estava dando carona de guarda-chuva para ela.
- Ah é? E o que ela
está te dando em troca dessas caronas?
- Por favor, não
seja ridícula...
- Ridícula? Você
que é um ridículo! Você não me procura mais na cama, não me dá
mais atenção, não sorri mais pra mim. Ah, mas pra mim você está
um pouco “velho e cansado”, né? Mas para aquela putinha
oferecida você não está!
- Querida, escute.
Sei que você não gostou do que viu, mas te garanto que não há
absolutamente nada entre...
- NÃO MENTE PRA MIM
SEU FILHO DA PUTA!!!! Você acabou com a minha vida, você é um
desgraçado, você me prometeu o que não podia cumprir. Maldita foi
a hora em que aquela pedra fechou a estrada e me obrigou a te
conhecer. Minha vida teria sido muito melhor sem você. Seu... seu...
- Seu... o quê?
Eu poderia ter
falado qualquer coisa, qualquer palavrão do mundo. Poderia ter
xingado a mãe, zombado do tamanho do pau, qualquer coisa. Para um
homem, qualquer ofensa tem volta, menos uma. E foi bem a que eu
falei, em alto e bom som.
- SEU CORNO!
O resto foi um
borrão. Falamos o que não devia nunca ser dito por ninguém. E nos
separamos. No começo foi um alívio, uma sensação de liberdade
indescritível. Mas algumas semanas depois, quando a adrenalina
abaixa e o vazio toma conta, é difícil segurar a barra. Eu ligava
para ele todos os dias, armava “emboscadas” na porta da
universidade, me jogava aos pés e implorava por perdão, implorava
para ele voltar pra mim. E me humilhei, me arrependi, chorei. Mas não
adiantou nada. Dois anos depois ele se casou novamente, com aquela
vaquinha. Nunca soube se já havia alguma coisa entre eles naquele
dia de chuva ou se ele só fez isso para me dar a impressão que
tinha me traído primeiro, pra “sair por cima”. Tentava me
convencer que era a primeira opção, para ficar com raiva e tentar
esquecê-lo e deixar de amá-lo. Mas no fundo da alma eu acreditava
que era a segunda e tinha a certeza que um dia ele ainda voltaria
para mim. Eu fiquei solteira, vagando por bares, ouvindo histórias
absurdas de homens que me queriam e me desejavam apenas por uma
noite. Também era o tempo que eu os queria e os desejava, então
entrei em acordo e me entreguei a muitos deles. Quantos homens uma
mulher pode amar na vida? Fisicamente eu amei vários, mas amar no
sentido real da palavra eu amei apenas um. E mesmo agora, há quase
dez anos sem contato, eu ainda o amo. Meu doce homem de ombros largos
e sorriso charmoso. Ele se separou da putinha loira e está morando
com a mãe, no interior do estado vizinho. Fiquei sabendo pelos meus
filhos, nos nossos raros telefonemas. Soube também que ele está com
câncer e isso me despertou um certo senso de urgência, tirou a
certeza que eu tinha de que um dia ele voltaria para mim. Ele não
voltaria, ele morreria. Todos nós morreríamos, mais cedo ou mais
tarde. Eu estou mais para 60 do que para 50, preciso vê-lo mais uma
vez, antes que isso deixe de ser uma opção. Preciso implorar pelo
seu perdão novamente, preciso perguntar se ele ainda me ama, dizer
que eu ainda o amo, dizer o quanto me arrependo por tê-lo perdido,
do quanto eu tenho saudade dos dias em que vivíamos juntos. Preciso
olhar nos olhos e dizer que ele sempre foi e sempre será o grande
amor da minha vida.
Esses pensamentos
tomam conta de mim durante a viagem e eu não vejo a estrada, nem o
tempo passar. Nem a chuva cair. A chuva se torna tempestade e eu me
sinto com vinte anos de novo, indo para o casamento da minha amiga.
Penso que toda a minha vida foi moldada por uma pedra que rolou do
barranco e bloqueou a estrada. Pelo destino, que sempre gosta de nos
dizer quem é que manda. E ele tentaria me dizer mais uma vez.
Vejo sirenes à
frente. A estrada estava fechada por causa de um deslizamento,
ironicamente quase no mesmo lugar em que houve o bloqueio há tantos
anos. Converso com o policial e descubro que, também ironicamente, a
estrada ficaria fechada por três dias. Ouço o destino rindo da
minha cara, mais uma vez. Penso em fazer o contorno pelo outro
estado. Penso em desistir. Então penso em fazer uma loucura. Sou
tomada por aquele pouquinho de insanidade que a gente precisa de vez
em quando, para tentar ser feliz.
Estou velha, mas
minhas pernas ainda são fortes, minhas coxas sempre foram grossas.
Volto até o posto de gasolina, encho minha mochila de garrafas
d´água e pão, paro o carro uma curva antes das sirenes e começo a
subir o morro. Vou contornar o deslizamento e caminhar os 112
quilômetros até a primeira cidade depois do bloqueio. De lá pego
carona, táxi, cavalo, qualquer coisa. Dá quase um dia inteiro de
caminhada, 20 horas mais ou menos. Eu aguento, tenho que aguentar.
Não vou deixar o destino ditar as regras dessa vez.
Subo com relativa
facilidade, mas o chão está pura lama lá no alto. Meu pé atola no
barro, mas sigo em frente. Escorrego e caio de bunda no chão, mas
não foi nada, só um susto. Passo pelo trecho do deslizamento,
torcendo para que nenhum policial me veja. Desço para a estrada um
pouco mais adiante, me ralando toda no mato. Vou caminhando e
caminhando. Encaro isso como um tipo de peregrinação, uma caminhada
de purificação. Depois penso que é engraçado sempre tentarmos
atribuir significados divinos paras as nossas ações. E sigo
caminhando, até minhas pernas começarem a queimar, meus pés
latejarem, até o dia amanhecer. E até depois disso. O sol do meio
dia castiga a pele, mas não posso parar agora. E não paro.
Continuo, ignorando a dor, até chegar à cidade, onde pego um táxi.
Passo pela entrada da cidadezinha da minha ex-melhor amiga e dou
risada ao me lembrar quando me contaram que ela acabou se separando
do marido por causa do primo “gatinho e muito inteligente”. Ao me
aproximar da cidade da minha ex-sogra, meu coração acelera. Estou
velha, exausta, imunda e com cara de acabada. Deveria ter me arrumado
melhor para esse encontro surpresa.
Chego à casa e pago
uma pequena fortuna ao motorista. Bato palmas no portão, a velha vem
ver quem é e demora um pouco para me reconhecer.
- Nossa minha filha,
você está diferente...
- Mais velha, né?
- É minha filha...
pra quem é novo, o tempo faz diferença. Eu já era velha quando a
gente se conheceu, então não devo ter mudado tanto.
- É, a senhora não
mudou quase nada, continua forte, hein?
Nunca gostei muito
dela, nem ela de mim. Mas aquela conversa banal me deu vontade de
chorar. Sentia alegria, saudade, remorso. Sentia vontade de ter vinte
anos novamente e fazer tudo de novo. Ela me conduz até o quarto dele
e não consigo conter as lágrimas. Choro mais ainda quando o vejo
deitado na cama, magro, pálido, sem nenhum fio de cabelo. Meu grande
amor está ali, dormindo, morrendo. Tantas coisas que eu quero falar.
Tantas coisas, tantas palavras. Mas ele acorda e me olha. Seus olhos
se enchem de lágrimas. Eu o ajudo a apoiar a cabeça mais para o
alto do travesseiro e ele me diz, respirando com dificuldade:
- Garota, eu gosto
do seu rosto...
Eu desabo a chorar.
Seguro a mão dele e canto baixinho “Obla-di,
Obla-da, life goes on bra... La La how the life goes on”.
Ele então sorriu pra mim. Não um sorriso qualquer, que a gente dá
quando ouve uma piada boba, mas sim AQUELE sorriso. O sorriso que
decretou o rumo da minha vida. E então eu provo o gosto da
felicidade novamente. Ouvimos a chuva começar a cair no telhado,
sentimos nossas almas unidas, como nunca deveriam ter deixado de ser.
Como na verdade, nunca deixaram de ser.
E
não precisamos dizer mais nenhuma palavra.
FIM
CONTATOS DO AUTOR
E-mail:
fabiobaptista.writer@gmail.com
Esse é o romance:
E esse a comédia:
Amara Fernanda.
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